segunda-feira, 20 de junho de 2016

SONETO LXXXVIII

Quando me tratas mau e, desprezado, 
Sinto que o meu valor vês com desdém, 
Lutando contra mim, fico a teu lado 
E, inda perjuro, provo que és um bem. 
Conhecendo melhor meus próprios erros, 
A te apoiar te ponho a par da história 
De ocultas faltas, onde estou enfermo; 
Então, ao me perder, tens toda a glória. 
Mas lucro também tiro desse ofício: 
Curvando sobre ti amor tamanho, 
Mal que me faço me traz benefício, 
Pois o que ganhas duas vezes ganho. 
Assim é o meu amor e a ti o reporto: 
Por ti todas as culpas eu suporto.


William Shakespeare


O "Nada"

Noite fria, penumbra reflete o negro.
Vento frio passa por baixo da porta,
Sussurrando baixinho: Solidão;
Tristeza;
Falsos amores;
Vazio;
Ódio;
Ócio e rancor.
Levanta-te, não há mais sono,
Não há como fugir.
A penumbra da noite já te tomou,
Como dois corpos fundidos, agora apenas um.
Na se vê, não se sente, não se ouve.
Vazio mais que o próprio Vazio.
Não há mais oque suportar ou não suportar.
Já não tem mais porta;
Já não tem mais vento;
Já não tem mais noite.
Penumbra já não reflete o negro,
Já é sua natureza,
Escura, Vazia e só.

Ordnael Sevla



Os Ombros Suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade)




Os versos acima foram publicados originalmente no livro "Sentimento do Mundo", Irmãos Pongetti - Rio de Janeiro, 1940.  Foram extraídos do livro "Nova Reunião", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1985, pág. 78.

domingo, 19 de junho de 2016

Embriaga-te.


            Devemos andar sempre bêbados. Tudo se resume nisto: é a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
            Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.
            E se alguma vez, nos degraus dum palácio, sobre as verdes ervas duma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que se passou, a tudo o que gemeu, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são: «São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia, ou com a virtude, a teu gosto.

(Charles Baudelaire)



Frio não é o Tempo

Um dia eu ouvir dizer
De um rapaz um tanto chato
Nos pés nem sapatos
Um verso me tocou:

Frio não é o Tempo
As vezes paro e sento
Eu e meu pensamento
Triste como tempo,
Frieza de contento.

Frio não é o Tempo
Nem meu pensamento
Tão mais quente que o fogo
Mais ainda não sou lobo
Pra poder me esquentar.

Frio não é Tempo
Sociedade com contento
De um simples pensamento
Frio é o Tempo.

Digo e repito
Frio não é o tempo
Nem meu pensamento,
E talvez nem o seu.

A dor não vem do frio
Mais da falta de calor
Se tem tempo... contento.
Sem tempo ... contento.

Sociedade com contento
De um simples Pensamento
Frio é sim o Tempo!

Ordnael Avlis






sexta-feira, 17 de junho de 2016

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Vinicius de Moraes